terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Outra Face - Seriam as Damas Medievais Mulheres Malvadas? (Alex Castro)

(Obs.: Para ver as imagens citadas, acesse o site do autor, citado no final do texto)

Meus leitores fiéis conhecem minha tara por mulheres malvadas. E, lendo o Quixote, uma coisa me chamou atenção: como todo aquele ideal da "distante senhora romântica medieval" é perigosamente próximo ao paradigma da femme fatale, da mulher má que tanto fascina nossa cultura até hoje.

Pra começar, é uma relação platônica e submissa. O cavalheiro já se coloca, desde o começo, totalmente inferiorizado em relação à senhora dona do seu coração.

Não há união possível entre eles. A impressão que temos é que, mesmo se ela oferecesse sexo ou casamento ao cavalheiro, ele teria recuado com horror diante de tamanha corrupção à pureza do seus sentimentos.

Entretanto, apesar da senhora representar um ideal cristão de perfeição, pureza e virgindade, ela também é sempre descrita como cruel e malévola, perversamente submetendo o pobre cavalheiro apaixonado àquela relação tão dolorosa, tão desigual, tão vã, tudo para satisfazer seus malvados caprichos.

As doces inimigas, como são chamadas várias vezes ao longo do livro, parecem se alimentar do amor e dedicação de seus cavalheiros, sem nenhuma intenção de corresponder-lhes o afeto.

Por fim, não era incomum os cavalheiros morrerem por suas damas. Alguns cometiam suicídios desesperados. A maioria, para satisfazer os caprichos de suas senhoras, acaba embarcando em aventuras tão perigosas e suicidas que a morte era quase certa.

E, durante todo esse tempo, fantasiavam que suas senhoras eram más e cruéis e morriam reconfortados no pensamento de que elas ao menos ficariam felizes com suas mortes, felizes de saberem-se capazes de despertar um amor tão forte e profundo que homens bravos e corajosos morriam como moscas por elas.

Dom Quixote que, naturalmente, digeriu e personificou toda essa tradição da perversa senhora medieval, sintetiza o assunto em uma carta para Dulcinéia (I, 25):

Soberana y Alta Señora,

El ferido de punta de ausencia, y el llagado de las telas del corazón, dulcísima Dulcinea del Toboso, te envía la salud que él no tiene. Si tu fermosura me desprecia, si tu valor no es en mi pro, si tus desdenes son en mi afincamiento, maguer que yo sea asaz de sufrido, mal podré sostenerme en esta cuita, que además de ser fuerte es muy duradera. Mi buen escudero Sancho te dará entera relación, oh bella ingrata, amada enemiga mía, del modo que por tu causa quedo: si gustares de acorrerme, tuyo soy; y si no, haz lo que te viniere en gusto, que con acabar mi vida habré satisfecho a tu crueldad y a mi deseo.

Tuyo hasta la muerte, Soberana e alta senhora!

O ferido do gume da ausência, e o chagado nas teias do coração, dulcissima Dulcinéia del Toboso, te envia saudar, que a ele lhe falta. Se a tua formosura me despreza, se o teu valor me não vale, e se os teus desdéns se apuram com a minha firmeza, não obstante ser eu muito sofrido, mal poderei com estes pesares, que, além de muito graves, já vão durando em demasia. O meu bom escudeiro Sancho te dará inteira relação, ó minha bela ingrata, amada inimiga minha, do modo como eu fico por teu respeito. Se te parecer acudir-me, teu sou; e, se não, faze o que mais te aprouver, pois com acabar a minha vida terei satisfeito à tua crueldade e ao meu desejo.

Teu até à morte

Pesquisando na Web, descobri inúmeras menções à essa carta como a mais bela carta de amor da língua espanhola. As pessoas são estranhas. Não posso imaginar uma relação menos sadia do que a descrita nessa carta. Parece mais a carta de um submisso a sua dominadora. Não faria feio no quadro de avisos de um Clube de BDSM.

Aliás, parece ter saído justamente de lá.

* * *

Em diversas ocasiões ao longo do livro, Dom Quixote dá a entender que a Dulcineia dos seus sonhos, a senhora com a qual ele fantasia, é dona de uma deliciosa crueldade (I, 13):

Yo no podré afirmar si la dulce mi enemiga gusta, o no, de que el mundo sepa que yo la sirvo; sólo sé decir, respondiendo a lo que con tanto comedimiento se me pide, que su nombre es Dulcinea; su patria, el Toboso, un lugar de la Mancha; su calidad, por lo menos, ha de ser de princesa, pues es reina y señora mía; su hermosura, sobrehumana, pues en ella se vienen a hacer verdaderos todos los imposibles y quiméricos atributos de belleza que los poetas dan a sus damas.

Não poderei afirmar se a minha doce inimiga gosta, ou não, de que o mundo saiba que eu a sirvo. Só posso dizer, em resposta ao que tão respeitosamente se me pede, que o seu nome é Dulcinéia, sua pátria Toboso, um lugar da Mancha; a sua qualidade há-de ser, pelo menos, Princesa, pois é Rainha e senhora minha; sua formosura sobre-humana, pois nela se realizam todos os impossíveis e quiméricos atributos de formosura, que os poetas dão às suas damas.

Em outro ponto, uma personagem feminina, leitora de romances de cavalaria, fala assim das perversas damas (I, 32):

Hay algunas señoras de aquéllas tan crueles, que las llaman sus caballeros tigres, y leones, y otras mil inmundicias. Y, ¡Jesús!, yo no sé qué gente es aquélla tan desalmada y tan sin conciencia, que por no mirar a un hombre honrado, le dejan que se muera, o que se vuelva loco. Yo no sé para qué es tanto melindre: si lo hacen de honradas, cásense con ellos; que ellos no desean otra cosa.
Tão cruéis são algumas daquelas senhoras, que os seus cavaleiros lhes chamam tigres, leões, e outras mil imundícies. Valha-me Deus! não sei que gente é aquela tão desalmada e falta de consciência, que, por não atenderem a um homem honrado, o deixam morrer ou dar em doido; não sei para que são tantos melindres; se o fazem por honradas, casem-se com eles, que eles não desejam outra coisa.

Por fim, uma nova personagem é introduzida: a ainda mais perversa Casildea de Vandalia, musa do Cavaleiro do Bosque. Ela é assim descrita por seu amado (II, 14):

Mi destino, o, por mejor decir, mi elección, me trujo a enamorar de la sin par Casildea de Vandalia. Llámola sin par porque no le tiene, así en la grandeza del cuerpo como en el extremo del estado y de la hermosura. Esta tal Casildea, pues, que voy contando, pagó mis buenos pensamientos y comedidos deseos con hacerme ocupar, como su madrina a Hércules, en muchos y diversos peligros, prometiéndome al fin de cada uno que en el fin del otro llegaría el de mi esperanza; pero así se han ido eslabonando mis trabajos, que no tienen cuento, ni yo sé cuál ha de ser el último que dé principio al cumplimiento de mis buenos deseos. (...)

Otra vez me mandó que me precipitase y sumiese en la sima de Cabra, peligro inaudito y temeroso y que le trujese particular relación de lo que en aquella escura profundidad se encierra. Detuve el movimiento a la Giralda, pesé los Toros de Guisando, despeñéme en la sima y saqué a luz lo escondido de su abismo, y mis esperanzas, muertas que muertas, y sus mandamientos y desdenes, vivos que vivos. En resolución, últimamente me ha mandado que discurra por todas las provincias de España y haga confesar a todos los andantes caballeros que por ellas vagaren que ella sola es la más aventajada en hermosura de cuantas hoy viven, y que yo soy el más valiente y el más bien enamorado caballero del orbe; en cuya demanda he andado ya la mayor parte de España, y en ella he vencido muchos caballeros que se han atrevido a contradecirme.

Meu destino, ou, para melhor dizer, a minha escolha, me levou a enamorar-me da incomparável Cassildéia de Vandália; chamo-lhe incomparável, porque não há com quem se compare, tanto na grandeza do corpo, como no extremo do estado e da formosura. Esta tal Cassildéia, pois, pagou os meus bons pensamentos e comedidos desejos com o fazer-me correr, como Juno a Hércules, muitos e diversos perigos, prometendo-me no fim de cada ano, que no fim do imediato alcançaria a minha esperança; mas assim se foram ampliando os meus trabalhos, que já não têm conta, e não sei ainda qual será o último que dê princípio ao cumprimento dos meus anelos. (...)

Em seguida, ordenou-me que me precipitasse no abismo de Cabra, perigo inaudito e temeroso! e que lhe levasse relação particular do que se encerra naquela profundidade. Pois bem! Detive o movimento da Giralda, levantei em peso os touros de Guisando, despenhei-me no abismo de Cabra e saquei à luz os seus arcanos, e as minhas esperanças sempre mortas, e os seus desdéns sempre vivos. Enfim, mandou-me ultimamente percorrer todas as províncias de Espanha, para fazer confessar a todos os cavaleiros andantes que ela é a mais avantajada em formosura a todas que hoje vivem, e que eu sou o mais valente e o mais enamorado do orbe, demanda em que tenho andado pela maior parte de Espanha, vencendo muitos cavaleiros que se atreveram a contradizer-me.

Um poeminha, já perto do final, define bem como o ideal romântico da dama medieval está intimamente ligado à sedução da mulher má e egoísta (II, 38):

De la dulce mi enemiga
nace un mal que al alma hiere,
y, por más tormento, quiere
que se sienta y no se diga.

Da minha doce inimiga
nasce a dor que a alma aflige,
e por mais tormento exige
que se sinta e não se diga.

Esse texto foi publicado originalmente, em Maio de 2005 no site: http://liberallibertariolibertino.blogspot.com

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